Lançamentos
Essencial
Só mesmo as canções parecem dispor do sortilégio que lhes permite adaptarem-se a ocasiões especiais das nossas vidas. Olhemos, ouvindo, os 3 inéditos que Paulo Gonzo nos oferece a abrir este Essencial. No primeiro, Quem Foi traçado a piano e a cordas, as palavras iniciais passaram recentemente por todos nós: “Quem foi que deu aos meus dias um nó tão apertado?” Mais adiante, há uma resolução que também aconchegámos, para estes tempos difíceis: “Eu quero dar mais de mim”. Damos de caras com Está Tudo Bem, a frase que tanto procurámos, fosse qual fosse a origem. Órgão e guitarra em tensão, à maneira do artista, conduzem-nos aonde queríamos: “Parece um espanta-medos a falar e a dizer – está tudo bem, eu já cheguei”. E ainda o surpreendente Diz que sim. É inevitável que, por agora, ouçamos estas 3 novidades de uma forma particular. Não é menos seguro que, quando os ventos e as marés voltarem a uma passada normal, estas cantigas ganhem outros contornos, sinais, lugares, sentidos. Como acontece sempre com o património artístico acumulado por Paulo Gonzo.
Para revitalizar esta conclusão, basta percorrer, sem falhas nem saltos, os outros 16 capítulos do que nos é apresentado como essencial. Hoje, 34 anos depois de Paulo Gonzo ter tomado posse de So Do I, não a ouvimos da mesma maneira. Foi aí que percebemos que o homem que conhecíamos como vocalista da pioneira Go Graal Blues Band – que trouxe novos mundos à música feita em Portugal nas décadas de 70 e 80 do século passado – não ia deixar de nos fazer companhia. Quem “arriscou” esse vaticínio de perenidade teve, logo de seguida, razões para sorrir e gozar o triunfo: Gonzo adoptou o Português e mostrou, sem precisar de explicações, optando pelos exemplos, como a abrangência nada tem de incompatível com a identidade. É só seguir o caminho inverso neste CD, com Pedras da Calçada (da autoria de Jorge Palma), Acordar (autor: Pedro Abrunhosa), a versão partilhada com Olavo Bilac de Jardins Proibidos e essa metáfora inspirada que é Dei-te Quase Tudo a funcionarem como alicerces para um edifício que, não o sabíamos, ainda estava – e ainda está… – longe de concluído. As vendas mostram números categóricos, todos banhados a Platina(s). Mas, mais do que isso, estas canções instalavam-se nas nossas almas e memórias. Para ficar.
Ainda assim, diante de um campeão, não só pelas vendas, mas pela cadência consecutiva de uma alta “nota artística”, faltava percorrer o caminho que trouxesse Paulo Gonzo, incólume e imaculado, de um público para vários, de uma geração para as seguintes, de um milénio para outro. É esse trajecto que fica superiormente documentado em cada uma das escalas que aqui une os pontos, todos cardeais, entre 2006 (álbum Paulo Gonzo, de onde chegam Sei-te de Cor e Falamos Depois, pedras de toque que se completam, com a paixão assolapada, de um lado, e a necessidade de um espaço próprio, do outro) e 2020 (com as novidades antes mencionadas). Uma nota para dissipar dúvidas: se não há aqui mergulhos nos discos Suspeito (1997) e Mau Feitio (2001), isso não fica a dever-se a qualquer quebra de qualidade ou a um renegar angelical dos títulos genéricos (!), mas apenas à falta de espaço para tudo o que ainda faltava convocar neste breve sumário da história de Gonzo, o homem que consegue ser bluesman, cantor de soul, rocker, parente próximo do jazz, crooner, baladeiro, até fadista – de pleno direito e com eficácia absoluta –, sem que jamais se corra o risco de não o reconhecer, identificar e aplaudir.
O caminho das canções é claro, transparente. Pelo que se justificam apenas mais duas ou três anotações, até para não desmerecermos o que é Essential e entrarmos pelo redundante… No meio este elenco de pérolas, descobre-se That’s Life, canção de 1963, que passou pelas mãos de Frank Sinatra, Aretha Franklin, James Brown ou Van Morrison. Comparem-se as respectivas versões com esta, de Paulo Gonzo, para termos outra vez a certeza da dimensão deste cantor que é nosso e que não esconde a multiplicidade sábia de interesses. Até nos pormenores: o órgão clássico, o saxofone temperado, a harmónica irrequieta, a guitarra (muitas vezes, a guitarra) a rasgar ou a embalar. Por absoluto contraste, escute-se também a cristalina Espelho (de Outra Água), outra das “raridades” do cantor, exponenciada pela componente orquestral – outro argumento para quem entenda e subscreva a opção de Gonzo por não deixar obras para trás, abandonadas pela ferrugem ou pelo bolor. É essa escolha que permite a que novos entusiastas se vão chegando a todas estas propostas: as canções que Paulo Gonzo trata por tu (Dei-TE Quase Tudo, Sei-TE de Cor, Diz-me TU, Sem TI, DIZ Que Sim), valorizando a proximidade. Mas sem cedências.
Por fim, há um invulgar sentido de partilha: mais de um quarto destas canções contém o desafio de chamar amigos, cúmplices, parceiros. Olavo Bilac e mais duas portuguesas, uma mais próxima do Fado e do crooning, Raquel Tavares, outra conotada com a área Pop Rock, Lúcia Moniz. Uma espanhola extraordinária, a andaluza India Martinez. Uma brasileira particular, Ana Carolina. E – não é pirraça, é um dado para entender este ecumenismo sem ziguezagues de Paulo Gonzo – ficaram “à porta” Jorge Palma, Rui Reininho, Tim, os Black Mamba, Boss AC, Anselmo Ralph, Matias Damásio, Tito Paris, Fáfá de Belém, se pensarmos PALOP. E o espanhol radical Diego El Cigala. E o mexicano Carlos Rivera. E o genial italiano Mario Biondi. E até o piano inesquecível de Bernardo Sassetti, também chamado a “dueto” noutra era. São, contas feitas por baixo, mais de 40 anos de uma cruzada que não prescinde de princípios e de meios, sem que se possa, ou queira, antever os fins. Pelo que não haverá margem de erro neste juízo: tudo o que aqui está é essencial, mas há muito mais, não menos essencial, além do que aqui se junta. Vou mais longe: este CD pode ser o Essencial de Paulo Gonzo. Mas é o próprio Paulo que, por estas e por (muitas) outras, não nos pode faltar.