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Caetano Veloso Meu Coco

Caetano Veloso: novo álbum “Meu Coco” já disponível digitalmente

Muitas vezes sinto que já fiz canções demais. Falta de rigor?, negligência crítica? Deve ser. Mas acontece que desde a infância amo as canções populares inclusive por sua fácil proliferação. Quem gosta de canções gosta de quantidade. Do rádio da meninice, passando pela TV Record e a MTV dos começos, até o TVZ no canal Multishow de agora, encanta-me a multiplicidade de pequenas peças musicais cantadas, mesmo se elas surgem a um tempo redundantes e caóticas. Há nove anos que eu não lanço álbum com canções inéditas. No final de 2019, tive um desejo intenso de gravar coisas novas e minhas. Tudo partiu de uma batida no violão que me pareceu esboçar algo que (se eu realizasse como sonhava) soaria original a qualquer ouvido em qualquer lugar do mundo. “Meu Coco”, a canção, nasceu disso e, trazendo sobre o esboço rítmico uma melodia em que se história a escolha de nomes para mulheres brasileiras, cortava uma batida de samba em células simplificadas e duras. Minha esperança era achar os timbres certos para fazer desse riff sonhado uma novidade concreta. E eu tinha a certeza de que a batida, seu som e sua função só se formatariam definitivamente se dançarinos do Balé Folclórico da Bahia criassem gestos sobre o que estava esboçado no violão. Com isso eu descobriria o timbre e o resto. Mas chegou 2020, o coronavírus ganhou nome de Covid-19 e eu fiquei preso no Rio, adiando a ida à Bahia para falar com os dançarinos. Esperaria alguns meses? 

Passou-se mais de ano e eu, tendo composto canções que pareciam nascer de “Meu Coco”, precisei começar a gravar no estúdio caseiro. Chamei Lucas Nunes pra começar os trabalhos. Ele é muito musical e também é capaz de comandar uma mesa de gravação. Começamos por “Meu Coco”, de que “Enzo Gabriel” é uma espécie de península: seu tema (seu título) é o nome mais escolhido para registrar recém-nascidos brasileiros nos anos 2018 e 2019. À medida que vou fazendo novas canções, me prometo pesquisar a razão de, na minha geração e mesmo antes dela, nomes ingleses de presidentes americanos terem sido escolhidos por gente simples e pouco letrada, principalmente preta, para batizar seus filhos: Jefferson, Jackson, Washington – assim como Wellington, William, Hudson – eram os nomes preferidos dos pais negros e pobres brasileiros. Ainda não fiz nenhum movimento nesse sentido, mas ter esse disco pronto e estar empenhado em lançá-lo me leva a certificar-me de que farei a pesquisa, como se fosse um sociólogo, assim como ter feito “Anjos Tronchos”, canção reflexiva que trata da onda tecnológica que nos deu laptops, smartphones e a internet, me faz prometer-me ler mais sobre o assunto. 

Cada faixa do novo álbum tem vida própria e intensa. Se “Anjos Tronchos” tem sonoridade semelhante à de Abraçaço, o último disco que fiz antes deste, “Sem Samba Não Dá” soa à Pretinho da Serrinha: uma base de samba tocada por quem sabe – e a sanfona de Mestrinho, que comenta as fusões de música sertaneja com samba tradicional. Uma discussão sobre o (não) uso da palavra “você” pela brilhante jovem fadista Carminho virou o fado midatlântico “Você-Você”, que ela terminou cantando comigo – e ganhou bandolim sábio de Hamilton de Holanda fazendo as vezes de guitarra portuguesa. Há “Não Vou Deixar”, com célula de base de rap criada no piano por Lucas e letra de rejeição da opressão política escrita em tom de conversa amorosa. “Pardo”, cujo título já sugere observação do uso das palavras na discussão de hoje da questão racial, teve arranjo de Letieres Leite, baiano, sobre a percussão carioca de Marcelo Costa. “Cobre”, canção de amor romântico, fala da cor da pele que compete com o reflexo do sol no mar do fim de tarde do Porto da Barra. Jaques Morelenbaum, romântico incurável, veio orquestrá-la. Mas também tratou de “Ciclâmen do Líbano”, com fraseado do médio-oriente salpicado de Webern. Devo Lucas a meu filho Tom: os dois fazem parte da banda Dônica; devo a atenção a novas perspectivas críticas a meu filho Zeca; devo a intensa beleza da faixa “GilGal” a meu filho Moreno: ele fez a batida de candomblé para eu pôr melodia e letra que já se esboçava mas que só ganhou forma sobre a percussão. E eu a canto com a extraordinariamente talentosa Dora Morelenbaum. 

Este é um disco de quantidade e intensidade. “Autoacalanto” é retrato de meu neto que agora tem um ano de idade. Tom, o pai dele, toca violão comigo na faixa. A nave-mãe, “Meu Coco”, guardou algo da batida imaginada, agora com percussão de Márcio Vitor. Mas o arranjo de orquestra que a ilumina foi feito por Thiago Amud, um jovem criador carioca cuja existência diz tudo sobre a veracidade do amor brasileiro pela canção popular.     

Caetano Veloso