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ADRIANA PARTIMPIM LANÇA NOVO ÁLBUM “O QUARTO”

“Partimpim vive no presente”. É assim que Adriana Calcanhotto se refere à maneira como seu heterônimo experimenta a passagem do tempo. Partimpim, portanto, não está 20 anos mais velha do que quando lançou seu primeiro disco, em 2004. Diferentemente dos meninos e meninas que ouviram aquelas canções — muitos deles hoje pais e mães de novos ouvintes —, ela segue sendo criança.

Mas isso não significa que Partimpim esteja parada no tempo há 20 anos. O mundo em torno dela muda, e ela reage às transformações e age sobre elas. “O quarto” (Sony Music) — álbum que chega às plataformas no dia 10 de outubro — testemunha isso de algumas formas: em “Malala”, que documenta pela força da existência da ativista paquistanesa o horror do Talibã que proíbe as meninas de estudar; em “Estrela, estrela”, canção do gaúcho Vitor Ramil, conterrâneo de Calcanhotto, que entra no disco como referência às chuvas que inundaram o Rio Grande do Sul este ano; em “Tô bem”, hit de TikTok da banda Jovem Dionísio que encantou a Partimpim que lançou seu primeiro disco num planeta em que não havia redes sociais.

Acima de tudo, porém, “O quarto” afirma a conexão de Partimpim com 2024 — o presente que ela vive hoje — numa ideia que atravessa o disco. Calcanhotto aponta a pista: 

— A Partimpim dá um recado claro na abertura do disco: “E nós vamos inventar o mundo”. 

Desde a abertura (“O meu quarto”, que traz o verso destacado pela cantora), até a última canção (“Estrela, estrela”), as oito faixas do álbum fazem uma defesa delicada e contundente da possibilidade de se inventar uma realidade mais nobre e mais bela do que esta que cavamos: da crise climática; da velocidade frenética; da emergência de autoritarismos; das telas que nos impedem de ver o horizonte; da ansiedade que espalha nossa atenção e nos impõe uma ausência constante; do desencanto detonado pelo noticiário. Uma convocação às crianças para que se invente o futuro, enfim — ou o presente, como ensina Partimpim. 

— O disco tem “Atlântida” e o “Boitatá”, essa coisa da lenda, da mitologia. De se afirmar, como Rita Lee faz em “Atlântida”, que “o mundo é dos que sonham que toda lenda é pura verdade” — destaca Calcanhotto.

“O meu quarto”, canção que abre o disco, poderia ser chamada de carta de intenções ou manifesto do disco, em sua defesa da liberdade de ser tudo e fazer tudo que se sonhar. Mas faltam às expressões “carta de intenções” e “manifesto” a alegria e a leveza que Partimpim lança sobre a vida. Melhor, portanto, ver na canção o que ela é: um convite à brincadeira de “inventar o mundo” que clama por ser reinventado.

A atmosfera seria a de um jazz club americano dos anos 1950, se jazz clubs americanos dos anos 1950 pudessem ser frequentados e gerenciados por crianças. O baixo de Guto Wirtti abre a porta do quarto, recebendo em seguida as percussões e o cavaquinho de Pretinho da Serrinha (produtor do disco), os teclados e o piano de brinquedo de Rodrigo Tavares e o clarinete de Jorge Continentino. Creditado como “Bagunça”, o grupo formado por Maria Aragão, Lorenzo Kaito, Clarice Nucci, Catarina Garcia, Camila Russo e Olívia Leite faz… bagunça. Em sua defesa, pode-se dizer que fazem muito, mas muito bem feito.

O simples crédito “produtor” não revela a importância de Pretinho na gênese do projeto. Calcanhotto já vinha pensando em celebrar as duas décadas de Partimpim. Inclusive, já tinha composto “O meu quarto”, que guarda essa brincadeira com o fato de “quarto” ser um lugar e um numeral — os sentidos da palavra se desviram e reviram em cambalhotas sem parar no nome do álbum.

Porém, foi só quando ouviu “Xande canta Caetano”, álbum de Xande de Pilares com produção de Pretinho, que Calcanhotto entendeu como queria que soasse o novo trabalho de seu heterônimo.

— Chamei o Pretinho e disse: “Eu quero aquilo. Não sei bem o que é aquilo, mas eu quero aquilo” — lembra Calcanhotto. — Aí ele começou a decupar o que era aquilo. Os músicos que tocaram com ele, como (o percussionista) Luizinho do Jêje, (o baterista) João Viana… Chamou essa turma, incluindo o Igor (Ferreira), engenheiro de som que por acaso já tinha trabalhado num projeto da Partimpim, no “Dois” ou num DVD, e era assistente, um menino na época. 

Conversando com Pretinho sobre os arranjos de “Xande canta Caetano”, Calcanhotto ficou sabendo que toda aquela sonoridade foi idealizada de um modo mais simples e espontâneo do que o resultado fazia crer. A cara da Partimpim, portanto.

— Isso me deixou ainda mais apaixonada por aquele jeito de fazer, ficou tudo mais atraente — conta Calcanhotto.

Depois de “O meu quarto”, o disco segue com “Atlântida”. A canção de Rita Lee e Roberto de Carvalho (do álbum “Saúde”, de 1981) está na mira de Partimpim desde o início de sua existência, e poderia compor o repertório de seu primeiro disco. Mas só agora ela virou matéria do sonho de Partimpim, na forma de um reggae de maré suave, com direito a vocais de “chuá, chuá”. Os tambores de Luizinho do Jêje dão uma consistência afro-sagrada à lenda, em meio a uma profusão de sons que evoca a riqueza do fundo do mar — o reco-reco de Pretinho, as notas-bolhas da guitarra de Pedro Baby e as bolhas mesmo feitas por Partimpim.

“Malala (O teu nome é música)” dá conta de outro sonho. A canção foi feita por Partimpim em 2018 para a peça “Malala — a menina que queria ir para a escola”, baseada no livro de Adriana Carranca sobre a ativista paquistanesa e Prêmio Nobel da Paz Malala Yousafzai. Os versos imaginam o momento em que o pai dela a batiza. Embalados num samba terno e suingado pelo cavaquinho de Pretinho, eles acabam por afirmar docemente os efeitos da revolução liderada por essa mulher, em sua luta para que meninas pudessem estudar numa região controlada pelo talibã: “O teu nome é música/ O teu nome é liberdade e paz/ E o mundo mudará cada vez que alguém disser ‘Malala’”.

Ao lado de “O meu quarto”, “Malala” foi lançada como single que antecipou o lançamento do disco. Ambas ganharam clipes que misturam animação e manipulação de bonecos. Com criação assinada por Partimpim, Clara Zúñiga e Emilio Rangel, eles trazem a cantora personificada numa boneca de olhos vivos e pés inquietos.

O disco segue com “Tô bem”, canção que Partimpim pinçou do repertório da banda Jovem Dionisio. Na verdade, a canção chegou até ela num post no Instagram do pitbull Sebastian, cão influenciador com 700 mil seguidores. 

Partimpim pegou a música — originalmente moldada às formas instantâneas e diluídas dos vídeos curtos de redes sociais — e a transformou em canção partimpiniana. Seu violão conduz sozinho, meio bossa nova meio pop vibes, até a chegada do tamborim e do cavaquinho de Pretinho, que ainda toca cuíca e surdo na faixa. Rafael Rocha marca latinidade no guiro e, quanto mais avança, mais acessórios o arranjo ganha. No fim, ápice do bonitinho, ele inclui Domenico Lancellotti e Eduardo Manso tocando pocket operators (sintetizadores de bolso) e Rodrigo Tavares no piano noise e no mellotron. 

Partimpim repete “tô bem, tô bem, tô bem, tô bem”, como se nos lembrasse o motivo pelo qual, no fim das contas, deveríamos nos arrumar. Calcanhotto explica que Partimpim canta como quem se arruma para dormir, veste seu pijama mais “bonitinho” e deita, esperando “aquele beijo” de boa noite. 

“Boitatá” — parceria de Marisa Monte, seu filho Mano Wladimir e Arnaldo Antunes — é baseada numa história real como toda lenda. No caso, o real aqui não é (só) a cobra de fogo que protege as florestas, mas sim o medo que Marisa tem dela. “A minha mãe tem medo do Boitatá”, diz o primeiro verso. A delícia maior da canção é saber que o Boitatá também tem medo dela — Arnaldo Antunes faz a voz do monstro medroso.

— Pedi pra Arnaldo gravar algo na música. Ele não sabia o que fazer e perguntou o que eu faria. Sugeri: “Faz um Boitatá com medo da Marisa Monte”. E ele fez, muito engraçadinho, muito bonitinho. As pessoas vão esperar aquela voz de Arnaldo e vem um bicho assustado: “O que que eu fiz que ela tá tão blava?” (risos)

A canção ganhou um arranjo de maracatu, com percussões de Pretinho, Thiago da Serrinha e Paulino, além de flauta pífaro de Jorge Continentino. A guitarra de Pedro Baby, o baixo de João Rafael e os teclados de Rodrigo Tavares dão colorido à divertida reflexão sobre o medo.

Rita Lee marca presença noutro momento de “O quarto”, desta vez indiretamente. “O bode e a cabra”, versão de Renato Barros para “I want to hold your hand”, estava no show em que ela lia de forma personalíssima o repertório dos Beatles. Partimpim quis a canção para si no instante em que a conheceu ali, pela voz de Rita. Pensou que aquela pérola do nonsense — um dos grandes hits da história do rock transformado num gostoso e estranho arrasta-pé romântico envolvendo os personagens do título, com direito a berros caprinos — era sua cara. E tinha toda a razão.

— Eu achava que era uma versão feita pela Rita! Só quando fui trabalhar no disco que descobri que tinha outras gravações. E que a versão era de Renato Barros, que vem a ser um dos autores de “Devolva-me” — conta Calcanhotto, chamando a atenção para aquilo que os menos sensíveis chamariam de coincidência.

O forró de Partimpim tem o acordeon de Kiko Horta e todo o arsenal de percussão do gênero (zabumba, triângulo, ganzá, pandeiro, queixada e agogô de castanha) tocado por Durval Pereira. Mas também tem espaço para o coro, a marcação do baixo de Sidão e, por fim, Pretinho no cavaquinho e num surpreendente beat box tamborzão.

O nonsense segue em “Os funis”, mas em outras latitudes. Os versos em forma de funil do poeta alemão Christian Morgenstern, traduzidos por Augusto de Campos, ganham melodia de Cid Campos. A letra imagina funis que andam pela noite da floresta enquanto por eles escorre o leite da lua. As percussões de Pretinho dão o passo da caminhada, costurada pelo violão sete cordas de Carlinho Sete Cordas e elevada pelo trompete de José Arimatéa. 

— Morgenstern é um poeta que busca liberar a língua de sua natureza burguesa — explica Calcanhotto. — E vem o Cid e faz pra esses versos uma música totalmente palatável. Depois Pretinho pega aquilo e traz pro seu jeito, uma coisa igualmente fluida. Aquilo tudo que era originalmente tão intelectualizado, no estúdio saiu de primeira. Por fim, chamei o Arimatéa, que é uma criança e toca como uma criança. Ele gravou três solos completamente diferentes, escolhemos na hora qual ficaria… e pronto. É a faixa para a qual nunca se pensou outra coisa, ela nasceu pronta.

Na primeira faixa de “O quarto”, Partimpim amanhece energética para retomar seu sonho. Na última, ela entoa “Estrela, estrela” como se delicada canção de ninar para se manter desperta — viva, enfim, apesar do cansaço do fim do dia, dos fins do mundo. A canção de Vitor Ramil sai dela como declaração de amor fundo ao Rio Grande do Sul, num momento em que seu estado natal se mostrava assolado pelas chuvas. 

— Naquele momento, o Serginho Groisman fez um programa “Altas Horas” com gaúchos — conta a artista. — A produção me pediu que eu cantasse um compositor gaúcho. O que me veio à cabeça não foi um compositor, foi uma canção, que era “Estrela, estrela”. Penso nela e começo a chorar, me vem a imagem daquele cavalo caramelo em cima do telhado. Isso me atravessa. 

Partimpim canta acompanhada por seu violão e pelas teclas (piano, harmônio e celesta) de Rodrigo Tavares, numa atmosfera serena. A sutileza do arranjo carrega a essência íntima que guia a leitura da cantora, seu sentimento. É bonito que o disco se encerre assim — e com versos que afirmam o sonho de nos sabermos vistos pelas estrelas, quando brilhamos em canção. 

A luz de “O quarto” então se apaga, e no escuro piscam os dois olhos verdes acesos.