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‘Negra Ópera’ é o novo trabalho de Martinho da Vila
“Negra Ópera” é o novo trabalho de Martinho da Vila, já disponível digitalmente. A edição do novo álbum antecipa a sua vinda a Portugal, onde o músico tem vários espetáculos já agendados em maio, 26 e 27 nos Coliseus do Porto e Lisboa, 4 de junho em Portimão – Festival Pé na Terra, e a 15 de julho na Figueira da Foz – BR Fest.
Depois de quase quatro minutos nos quais reina a orquestra regida pelo maestro Leonardo Bruno, ouve-se pela primeira vez a voz de Martinho da Vila, que diz apenas, com a sua suavidade categórica: “Zumbi dos Palmares, Zumbi”. É Zumbi, portanto, que Martinho convoca como o mestre-de-cerimónias da sua “Negra Ópera”, nome do novo disco lançado a 12 de maio de 2023 – véspera da data em que se celebra o aniversário da Abolição, ou pelo menos da primeira Abolição de muitas que ainda estão por vir…
A liberdade e a resistência encarnadas na figura de Zumbi aparecem, assim como os grandes pilares sobre o qual se ergue o disco. Não por acaso, a primeira canção que Martinho entoa, logo após a já citada peça orquestral “Abertura Negra Ópera”, é exatamente “Heróis da liberdade” (Mano Décio da Viola/ Manoel Ferreira/ Silas de Oliveira). Também não por acaso, na introdução da faixa o cantor recorda os poetas Solano Trindade e Cruz e Sousa, que “falavam muito em liberdade”.
No canto compassado de Martinho, o clássico samba do Império Serrano soa como uma celebração serena. A dinâmica do arranjo, que vai do tamborim a solo com os coros no início, até à batucada mais ritmada do final, acompanha esse mesmo espírito.
No avançar do disco, a serenidade ganha sombras, contornos ainda mais densos e dramáticos, a despeito do canto macio de Martinho. Afinal, segundo ele, é uma ópera.
Nas suas palavras: “Meus discos são sempre muito alegres, queria fazer algo diferente. Como gosto muito de ópera, pensei em fazer a minha ópera, com uma boa dose de dramaticidade. E negra, porque as músicas são fundamentalmente ligadas a questões negras, os músicos são praticamente todos negros” — afirma o cantor sobre o disco produzido por Celso Filho, Martinho António e Pretinho da Serrinha.
A religiosidade afro-brasileira e a ancestralidade mostram-se em “Timbó” (Ramon Russo), sobre um personagem descrito como “um grande feiticeiro”. O rapper carioca Will Kevin canta com Martinho e projeta as sabedorias antigas em direção ao futuro, criando versos como “Tudo que vai ao chão vai voltar melhor”.
A faixa seguinte, “Exu das sete”, mergulha ainda mais no terreiro, com o arranjo todo apoiado na percussão, reproduzindo uma gira. Esta faixa é uma das três inéditas do disco, composta recentemente por Martinho. Preto Ferreira, filho de Martinho, canta com o pai na gravação.
— “Eu sou católico, e como bom católico brasileiro, tenho um pé na umbanda” — diz Martinho. — “Como no catolicismo cada pessoa tem seu anjo da guarda, nas religiões de origem africana nós temos um exu. O meu é o Exu das Sete, então fiz essa música. Chamei Preto pra cantar comigo porque ele é messiânico. Achei que seria bom pra música e pra ele, gosto de incentivar a convivência das religiões.”
Lançada em 1983 no disco “Novas palavras”, “Linda Madalena” foi composta por Martinho há cerca de 60 anos, quando ele dava os seus primeiros passos no samba, na Aprendizes da Boca do Mato. Conta a história de um triângulo amoroso “resolvido” com a morte de um dos vértices, graças a “uma macumba” feita por Madalena — novamente o feitiço como elemento da “Negra Ópera”. Com sabor de samba rural, conta com a sanfona de Kiko Horta.
A morte marca presença em algumas das canções do disco:
— “Depois que eu vi que tinha bastante morte. Mas tá de acordo com a ópera. Tem uma definição de ópera que diz que quanto mais feia a história, mais bonita é a opera” — brinca Martinho.
Na sequência, “Malvadeza Durão” (Zé Ketti) traz outra morte, cantada sobre o arranjo elegante e moderno centrado no piano de Maira Freitas, filha de Martinho. Outra filha do cantor, Mart’nália, faz dueto com o pai nesta faixa e presta-lhe um descontraído tributo. Num breve diálogo no qual pede emprestado o verso “Eu sou o samba” de outra canção de Zé Ketti, dedica-o a Martinho: “O samba é tu”, diz ela.
“Acender as velas” (também de Zé Ketti), outra história de assassinato no morro, é cantada apenas com a viola magistral de Cláudio Jorge. O convidado da faixa é o cantor Chico César, num dueto tão perfeito que faz questionar o porquê de não ter acontecido antes. Não por coincidência, no dia 13 de maio (data da Abolição), chegou às 12h00 o videoclipe da canção ao YouTube.
A segunda faixa inédita do disco, “Dois de Ouro”, (sobre a história real do capoeirista baiano), é também da safra recente de Martinho. O compositor incorpora a linguagem da capoeira de maneira tão orgânica que faz parecer que o seu refrão é ancestral: “Ê, berimbau/ Uma corda de aço e um arco de pau”.
A terceira inédita da “Negra Ópera” é “Diacuí”, baseada em mais uma história real. No caso, a tragédia da indígena que nos anos 1950 se casou com um sertanista, engravidou e morreu no parto.
— “Fiquei pensando numa história de amor dramática para pôr no disco e lembrei de Diacuí” — conta Martinho. — “Eu li a história nos jornais na época, me causou muita emoção, e aí fiz esse samba, nos anos 1960. Estava guardado desde então. E como o drama indígena se aproxima bastante do drama do negro, achei que ficaria bom pôr a música no disco.”
O tema “Mãe solteira” (Wilson Batista/ Jorge de Castro), sobre a mulher que se suicida pegando fogo ao próprio corpo por “vergonha de ser mãe solteira”, ganha leitura à altura do seu drama. Martinho canta-a acompanhado apenas pelo contrabaixo acústico, tocado com arco por João Rafael.
Outra música recuperada de um disco antigo (no caso, “Coração malandro”, de 1987), “A Serra do Rola Moça”, é um poema de Mário de Andrade musicado pelo compositor da Vila. Conta mais uma história trágica da morte de um casal num precipício. Com sabor rural, a faixa tem como convidado Renato Teixeira, que Martinho conhece desde o histórico Festival da Record de 1967, no qual os dois foram concorrentes.
Talvez a mais triste de todas e interpretada assim por Martinho, “Iracema” (Adoniran Barbosa) é a canção que encerra a “Negra Ópera”. O personagem lamenta o acidente que levou a vida da mulher, seu grande amor, que “atravessou em contramão”. Um drama que Martinho trata como negro.
— “Adoniran não era branco, não” — Diz Martinho, referindo-se talvez ao universo marginalizado que o paulista cantava.
Na gravação, a beleza e profundidade do arranjo torna tudo ainda mais triste, e a sua tristeza torna tudo ainda mais belo, confirmando o que Martinho afirma sobre a natureza da ópera.